(eter)

07 janeiro 2008

morreu um pouco de liberdade


(excerto da entrevista de JPG a Luiz Pacheco)
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...O Duarte Pacheco era diabético e um trabalhador incansável… estava lá no ministério até às tantas, a beber leite, era um gajo de facto com uma visão do futuro… depois tinha o apoio do velho Salazar, que também não era tão mal como isso… não era tão mal como isso… era péssimo.. mas enfim… era péssimo, mas também não era como estes merdas que há agora…
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[Batem à porta do quarto, entra um homem]

Visita: “Boa tarde"
Pacheco: “Quem é?”
Visita: “Pacheco?”
Pacheco: “Quem fala?”
Visita: “Aqui é o Armindo”
Pacheco: “É o…?”
Visita: “O Armindo”
Pacheco: “Quem é o Armindo?”
Armindo: “Já não te lembras de mim, pá?”
Pacheco: “O Armindo?”
Armindo: “Estivémos presos no Limoeiro”
Pacheco: “Eu sei lá quem é o Armindo, pá…”
Armindo: “Como é que não sabes…? já não te lembras…?”
Pacheco: “Não, filho, não estive preso contigo, nem com a tua avó...”
Armindo: “Também, com esta escuridão… [no quarto do Pacheco]… eu era um miúdo”
Pacheco: “Olha, vai dar uma volta…”
Armindo: “Vou…?”
Pacheco: “Vai dar uma volta e vem cá amanhã… que estamos a gravar… tu estás a ficar aqui gravado, podes ser preso outra vez…”
Armindo: “Está bem pronto, O.K. Agora que estive a dizer que estive preso e tudo… isso é uma reportagem?”
Pacheco: “É, é… é uma reportagem… mas não é da televisão…”
Armindo: “É da TSF?”
Pacheco: “Vem cá amanhã filho e não sejas preso hoje"
Armindo: “Não, eu aliás já me deixei disso”
Pacheco: “Aguenta-te cá fora, vem cá amanhã, mais cedo, que a esta hora já estou a dormir, se não fosse este maluco já estava a dormir…"
Armindo: “Como me disseram que andavas aqui nas tascas, aqui de roda, de vez em quando…”
Pacheco: “Vai dar uma volta…”
Armindo: “Tchau, adeus… isso fica para a reportagem?"
Pacheco: “Fica…”
Pacheco para o entrevistador: “Não sei quem é, nem tenho óculos… Sei lá quem é esse gajo… Quem será este cabrão, nem vi a cara dele… Armindo? Puta que o pariu. Se ele esteve no Limoeiro deve ser um grande fodido, ainda me rouba… Eu estive no Limoeiro com milhares de gajos, porra, olha o que faltava agora era aparecer-me aqui a tropa toda, milhares de gajos... eu estive lá 3 vezes, imagina o que não era..."
O que é, para si, um libertino?
"As pessoas não percebem nada do que é o libertino. O termo ficou, na linguagem vulgar, associado a coisas disparatadas, como sinónimo de devassidão. Ora libertino não é apenas um devasso. Não é apenas aquele tipo que gosta de ir para a cama com homens, com mulheres, com todos ao mesmo tempo... O libertino é um tipo livre, que está contra todas as tiranias. O Sade, por exemplo... aquilo que o Sade conta está quase tudo dentro da imaginação dele... Repara: o gajo esteve quarenta e tal anos prisioneiro em masmorras e hospícios, e à ordem de quatro regimes: a realeza absoluta, a realeza constitucional, a Revolução e o Império, o que mostra bem como o libertino é o maior inimigo de todos os sistemas e como estes o odeiam, o temem. Porque os sistemas são a ordem e o conforto, ao passo que o libertino é a aventura, é o descontrolo. O Sade está aí. O Sade está entre nós. Mais: o Sade está em todos, dentro de nós."
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[Bate à porta um velho para informar que o almoço é empadão]
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Pacheco: “Este gajo irrita-me. Quando estou a dormir na cadeira ele grita: BOM DIA. Ele não diz bom dia, ele atira o bom dia como quem atira uma pedra."
"... opá, um tipo que quer fazer carreira, se não for parvo de todo e for um bocadinho filho da puta... é facílimo... O meio literário é de cortar à faca, é muito fácil de penetrar. Eu, que nasci em Lisboa, via-os chegar da província, os Namoras, os Amândios César, os Paço d’Arcos, etc., andavam por aí a borbulhar, a deslizar, a ver quem chega primeiro.É como os espermatozóides."
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Considera-se um marginal?
"Eu não me considero coisíssima nenhuma. Eu considero-me um gajo que está aqui sentado."

"... a Maria João Rolo Duarte sabia que o Cesariny recebia mais que eu e, numa festa em que encontrou o Santana Lopes, fê-lo prometer que me aumentava o subsídio. Como ela escrevia na Capital, publicou um texto que comprometeu o Santana. Recebi mais 30 contos por mês, passou para 90 contos. Mais trinta contos por mês, um conto por dia... de repente apareceu-me lá em Setúbal uma carta com retroactivos, 6 meses, foi um balúrdio... 30 contos é uma grande diferença... Gosto do Santana por causa disso. E também porque é um playboy, um gajo dos copos, das discotecas…"

"... De repente sou confrontado com situações de que não lembro de nada... eu andei debaixo de álcool, álcool misturado com drogas, não é o haxixe e essas coisas que vocês tomam agora, era o Lorenine, era o Valium, era essas merdas. Eu tinha dias em que não me lembrava, no dia seguinte, absolutamente de nada... podem contar-me tudo o que quiserem que eu não vou negar, mas vou negar para quê? Já não consegues desfazer em muita gente a opinião que fazem de ti, é muito difícil de desfazer... por exemplo, o B.B., foi ele que apresentou esse livro de Coimbra, o lançamento foi ali na livraria Ler Devagar... eu não fui lá, ficou muito ofendido... eu se fosse lá era para lhe dar com uma bengalada... o gajo começa: “Luiz Pacheco, bebedeiras, prisões, sexo bilateral... até parece que ninguém viu o B.B. bêbedo... eu por acaso vi... às vezes aparecem-me aqui gajos que dizem que me conhecem... sei lá quem são os gajos, não faço ideia nenhuma... um dia destes apareceu aqui um gajo: “eu sou o António Carranca”, como quem diz “eu sou o Napoleão”... eu não fixo caras... quando você chegou aqui, se dissesse “eu sou o Kadafi”, eu acreditava..."
"... Como é que foi o seu 25 de Abril? Opá, os colhões do Padre Inácio... já ninguém liga ao 25 de Abril..."

"... Agora não respondo mais nada... estou cansado... são 80 anos, caramba!... vá, pira-te que eu tenho de mijar e tenho de ir comer qualquer coisa..."

1 comentário:

Unknown disse...

Brilhante. O Pacheco tinha classe, muita classe.
Saudações,
VA